Síndrome Coronariana Aguda em Vigência da Pandemia por Covid-19

No Brasil até a data de hoje (06/04/2020) já temos 12.056 casos, com 553 óbitos e letalidade de 4,6%.2
As manifestações respiratórias são indubitavelmente as mais comuns durante a doença pelo SARS-CoV-2, iniciada em 2019 (COVID-19), variando desde uma gripe até a SARS. Porém tem sido subestimadas as manifestações extrapulmonares da COVID-19 que são frequentes. Complicações cardiovasculares agudas e descompensações das doenças crônicas são comuns e resultam de vários mecanismos, incluindo isquemia relativa, inflamação sistêmica e lesão mediada diretamente pelo patógeno.3 As complicações cardiovasculares da COVID-19 em uma das maiores coortes clínicas mostrou a presença de injúria cardíaca aguda, choque e arritmias em 7,2%, 8,7% e 16,7% respectivamente.3

A fisiopatologia que envolve a instabilização de doenças cardiovasculares crônicas, em vigência da COVID-19, passa pelo desbalanço entre o aumento da demanda metabólica e redução da reserva cardíaca. Pacientes com doença arterial coronária podem ser particularmente de risco para ruptura de placa coronária secundária à inflamação induzida sistematicamente pelo SARS-CoV-2 e o rigoroso uso de medicações com função de estabilização da placa (ácido acetil salicílico, estatinas, betabloqueadores e inibidores da enzima conversora da angiotensina) deve ser feito sistematicamente.3

O efeito pró-coagulante da inflamação sistêmica pode aumentar o chance de trombose de stent e a terapêutica antiagregante deve ser intensificada para pacientes submetidos a procedimentos recentes.3 Além da presença de um número aumentado nos cardiopatas de receptores da enzima conversora da angiotensina 2 que é uma das principais vias que o SARS-COV-2 utiliza como receptor funcional para ligação e invasão da célula. Este receptor é encontrado principalmente no sistema cardiovascular e pulmão.3 Assim há necessidade do manejo multidisciplinar destes pacientes, principalmente daqueles com história clínica prévia de doença arterial coronária. 

Um diagnóstico diferencial difícil é entre síndrome coronariana aguda (SCA) clássica e a injúria miocárdica pelo SARS-CoV-2. Os pacientes têm dor torácica, assim como alterações do eletrocardiograma (ECG) e elevação da troponina, mas o mecanismo não é o de ruptura de placa. Num estudo incluindo 54 pacientes, com idade média de 68 anos, um total de 24 (44,4%) complicaram com injúria miocárdica. A mortalidade dos pacientes com injúria miocárdica foi significante maior que aqueles sem injúria, 60,9% x 25,8% (p=0,013). Na injúria miocárdica devemos ter confirmação da COVID-19 pela clínica e exames laboratoriais e os pacientes graves têm que realizar ECG e monitorização de troponina. Infelizmente não teremos um tratamento específico mas um dado prognóstico muito desfavorável.4 Outro fator de confusão é que muitos dos pacientes que desenvolvem injúria miocárdica já tinham alguma doença cardíaca pré-existente mais frequente que naqueles sem injúria: hipertensão arterial (59,8% x 23,4%; p <0,001), diabetes mellitus (24,4% x 12%, p=0,008), doença arterial coronária crônica (29,3% x 6%, p<0,001) doença cerebrovascular  (13% x 2,7%, p<0,001) e insuficiência cardíaca crônica (14,6% x 1,5%, p<0,001).5 Ou seja, a grande maioria dos pacientes com injúria miocárdica são idosos e com vários fatores de risco para doença coronária e após a recuperação da COVID-19 devem passar por avaliação cardiológica detalhada para afastar presença de coronariopatia associada.
 
O infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST (IAMCS) é uma doença com alta morbimortalidade cujo tratamento na maioria dos serviços já envolve protocolos para angioplastia primária ou então trombólise com metas rigorosas de tempo para instituir a terapia. Um grupo de Hong Kong avaliou o impacto da COVID-19 no tratamento do IAMCS.6 Foram avaliados os intervalos de início dos sintomas de dor torácica até o primeiro contato médico, o tempo porta-guia, ou seja, até a passagem do fio guia durante a angioplastia primária e tempo de chegada do paciente na hemodinâmica até passagem com sucesso do fio guia. Foram comparados pacientes com IAMCS admitidos de 25/01/20 até 10/02/20 (N=7) e pacientes com IAMCS de 01/02/18 até 31/01/2019 (N=108). A média e interquartis do intervalo entre o início dos sintomas e contato médico foi de 318 (75-458) min no período com COVID-19 versus 82,5 (32,5-195) min em 2018. Assim como o tempo porta-guia foi de 110 (93-142) versus 84,5 (65,25-109,75) min e o intervalo de chegada à hemodinâmica e passagem do guia 33 (21-37) min versus 20,5 (16-27,75) min respectivamente. Fica claro o atraso dos pacientes com IAMCS em procurar o serviço médico pelo risco da infecção pela COVID-19. Houve também um atraso na transferência para sala de hemodinâmica que pode ser explicada pela necessidade de precauções como história epidemiológica detalhada, busca de sintomas da COVID-19 e realização de radiografia de tórax. Além disto se houver contaminação da sala de hemodinâmica haverá necessidade de descontaminação muito detalhada. Após chegar à hemodinâmica, o profissional que fará o exame necessita maior tempo para se paramentar e preparar o paciente, aumentando tempo para início do exame.6 Este trabalho é uma publicação preliminar, com número pequeno de casos, não possibilitando uma estatística definitiva, porém muito útil para elucidar a questão da dificuldade do tratamento do IAMCS uma doença inclusive com mortalidade bem mais elevada que da própria COVID-19.

O Peking Union Medical College Hospital publicou uma recomendação para manejo de IAM durante a COVID-19.7 A discussão é que o tratamento destes pacientes com IAM deve ser eficiente e seguro. De fato, a maioria das salas de hemodinâmica não possuiu isolamento respiratório.
Para os pacientes com COVID-19 confirmados ou com alta suspeita e com IAMCS, deve-se proceder ao isolamento já preconizado e se estiver dentro de um período de 12h do início dos sintomas e não havendo contraindicação, a conduta preconizada é a realização de trombólise. Deve-se buscar um tempo porta-agulha de 30 min. Neste protocolo estes pacientes não realizam estudo hemodinâmico nem quando ocorre insucesso de trombólise, ficando em tratamento clínico em uma unidade para COVID-19.
A trombólise também pode ser feita e a recanalização confirmada pela angiotomografia de coronárias. Já os pacientes onde a COVID-19 puder ser excluída dentro de 1h, ou quando a possibilidade de COVID-19 for muito baixa, devem ser submetidos a intervenção coronária percutânea imediata.  Nos casos com risco baixo para COVID-19, os exames a beira leito assim como avaliação do infectologista devem ser feitos e se o paciente for considerado de baixo risco deve ser submetido à cateterismo de urgência e ir para unidade coronária. Quando for indicada a sorologia para SARS-COV-2, ela deve ser colhida e então iniciar trombólise na emergência. Se não puder realizar trombólise, e o teste para COVID-19 vier positivo encaminhar para unidade de tratamento de COVID-19 e se vier negativo fazer angioplastia primária. Nos pacientes com infarto agudo do miocárdio sem supradesnivelamento do segmento ST (IAMSS) a conduta do grupo foi similar. Primeiramente era feita uma estratificação de risco pelo escore de GRACE e avaliada a presença de COVID-19. Os pacientes com COVID-19 independente do risco e da evolução clínica ficavam em tratamento clínico e eram encaminhados para uma unidade de tratamento de COVID-19. Já aqueles negativos para COVID-19 eram submetidos, de acordo com estratificação de risco, a cateterismo e tratados na unidade coronária.7 De fato, esta é uma postura bastante marcante do grupo de Peking, realizando estudo hemodinâmico apenas nos pacientes negativos para COVID-19, independente da estratificação de risco ou eventuais complicações.
    
Num outro estudo, numa situação de ter um paciente com IAMCS acompanhado com febre e sintomas respiratórios deve-se avaliar a história epidemiológica e se houver suspeita de COVID-19 associada hospitalizar em isolamento e realizar o teste rápido. Se o paciente tem o teste positivo, deve permanecer em isolamento e o tratamento de escolha para IAMCS deve ser trombólise, com realização de cateterismo após a negativação do teste rápido. Os pacientes de alto risco ou com contraindicação para trombólise irão para hemodinâmica. Deve ser tratado apenas o vaso culpado. Porém, aqueles com pneumonia grave e instabilidade hemodinâmica talvez devam ficar em tratamento conservador.8 Já os pacientes com IAMSS em vigência de COVID-19 devem ser mantidos em isolamento e realizar o procedimento invasivo após negativação do teste para coronavírus. Pode surgir alguma emergência e aí o cateterismo é feito de imediato.8 Este protocolo visa preservar os outros pacientes e a equipe de hemodinâmica da contaminação pela COVID-19. Sabemos que no Brasil muitos serviços têm apenas uma equipe de hemodinamicista que se colocados de quarentena inviabiliza todo serviço. Entretanto não há questionamento quanto à necessidade de realizar cateterismo nos casos graves, ou quando trombólise for ineficaz. Nesta circunstância o cateterismo cardíaco deve ser feito de emergência.  Mas, de fato, há uma mudança de paradigma onde vamos dar preferência à trombólise, mesmo nos centros com hemodinâmica, visando principalmente preservar a equipe de contaminação pela COVID-19.  
     
Em termos de prognósticos, os pacientes com SCA que estão infectados com SARS-COV-2, frequentemente tem um prognóstico pior, pois a reserva funcional pode ser reduzia pela isquemia ou necrose miocárdica. E pacientes com COVD-19 em Wuhan que tiveram SCA previamente também apresentavam um pior prognóstico com aumentada.9 
De fato, a condução dos pacientes com COVID-19 e IAMCS ou IAMSS requer um balanço entre os riscos de contaminação de uma equipe que pode ficar isolada até por 14 dias e a assistência dos pacientes de acordo com a estratificação de risco e sinais de complicações clínicas. A trombólise é uma terapêutica factível para os pacientes com IAMCS sem contraindicações e na janela terapêutica, deixando a estratificação invasiva para um outro momento. Assim como pode lançar mão da angiotomografia de coronárias. Nos pacientes com IAMSS o tratamento clínico sempre é o inicial e o cateterismo cardíaco pode ser postergado.
Os cuidados com os equipamentos de proteção individuais devem ser redobrados pois o risco de contaminação da equipe é muito grande. Deve-se ponderar também submeter um paciente com infecção pela COVID-19, que pode desenvolver complicações graves como SARS, SEPSE, insuficiência renal aguda, a um procedimento invasivo precoce e às vezes desnecessário. Porém para os casos graves se síndrome coronariana aguda, com complicações como choque cardiogênico, falha na trombólise, arritmias malignas o estudo hemodinâmico é essencial e não vamos poder adiá-lo. O acompanhamento clínico e com os exames não invasivos podem ser suficientes para que possamos indicar um estudo hemodinâmico que é invasivo no momento correto, sempre preservando a ética médica.

Referências bibliográficas. 

1.  Wang D, Hu B, Hu C, Zhu F, Liu X, Zhang J, Wang B, Xiang H, Cheng Z, Xiong Y, Zhao Y, Li Y, Wang X, Peng Z. Clinical characteristics of 138 hospitalized patients with 2019 novel coronavirus-infected pneumonia in Wuhan. China. JAMA 2020. Doi.org/10.1001/jama.2020.1585. 

2. https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/06/2020-04-06-BE7-Boletim-Especial-do-COE-Atualizacao-da-Avaliacao-de-Risco.pdf.

3. Xiong T-Y, Redwood S, Prendergast B, Chen M. Coronaviruses and cardiovascular system: acute and long-term implications. Eur Heart J.2020,0:1-3. Doi: 10.1093/eurheartj/ehaa231.  

4. He XW, Lai JS, Cheng J, MW Wang, Liu YJ, Xia ZC, Xu C, Li SS, Zeng HS. Impacto of complicated myocardial injury on the clinical outcome of severe or critically ill COVID-19 patients. Zhonghua Xin Sue Guan Bing Za Zhi, 2020:15;48(0):EA11. Doi: 10.3760/cma.j.cn112148-20200228-00137.

5. Shi S, Qin M, Shen B, Cai Y, Liu T, Yang F, Gong W, Liu X, Liang J, Zhao Q, Huang H, Yang B, Huang C. Association of Cardiac Injury With Mortality in Hospitalized Patients With COVID-19 in Wuhuan, China. Jama Cardiol. Doi:10.1001/jamacardio.2020.0950.

6. Tam CCF, Cheung KS, Lam S, Wong A, Yung A, Sze M, Lam YM, Chan C, Tsang TC, Tsui M, Tse HG, Siu CW. Impact of Coronavirus disease 2019 (COVID-19) outbreak on ST segment-elevation myocardial infarction care in Hong Kong, China. Cir Cardiovasc Qual Outcomes. 2020;13:e006631. Doi:10.11611/CIRCOUTCOMES.120.006631

7. Peking Union Medical College Hospital. Recommendations from the Peking Union Medical College Hospital for the management of acute myocardial infarction during the COVID-19 outbreak. Eur Heart J. 2020:0:1-5. Doi:10.1093/eurheart/ehaa258. 

8. Zeng J, Huang J, Pan L. How to balance acute myocardial infarction and COVID-19: the protocols from Sichuan Provincial Peoples’ Hospital. Intensive Care Med. Doi.org/10.1007/s00134-020-05993-9.

9. Zheng YY, Ma YT, Zhang JY, Xie X. COVID-19 and cardiovascular system. Nat Rev. Cardiol. 2020 Mar 5. Doi:101038/541569-020-0360-5.

  • Data: 22/06/2020
  • Autor: Dra. Renata Teixeira Ladeira CRM - MT 6303 - Fonte: SBC MT